Antes de ir

Escrito por Fabs.

"Lembro-me bem daquela época, era pelas voltas de 2010. Eu tinha lá meus vinte ou vinte e poucos anos, faça a matemática depois. Era uma época interessante afinal, meio sofrida, mas interessante. As pessoas andavam por ai como aquelas baratas as quais você acabou de envenenar, eram sem rumo, andavam em círculos sem saber ao certo que direção seguir."

Para neste momento para beber um gole de água, é difícil engolir mas ele insiste porque quer falar e com a garganta seca, a voz que normalmente sofre pra sair empacaria de vez.

"Era ano eleitoral, um dos mais sem pé nem cabeça que já vivi. O número de candidatos inúteis era altíssimo, mas não os culpo, até eu gostaria de uma vaga para encher meus bolsos sem fazer nada. Além deles, as propostas eram outra curiosidade daquela época, tinha um que só falava de saúde, tinha outra que só falava do que o presidente anterior havia feito, tinha outra que só falava da Amazônia e por aí vai. Nada de concreto era de fato falado. Eu disse que eram momentos difíceis."

Faz uma cara de paisagem, sorri, suspira e retorna.

"Um dos assuntos-chave daquela época era o tal do Aquecimento Global. Dai alguém inventou de falar que o mundo ia acabar em 2012, deu pra ver que acabou mesmo né? Mas enfim, aquele assunto corria as mídias, era discutido em mesa de bar e em âmbito acadêmico, todo mundo falava nisso, mas quem fazia algo eram poucos. Me envergonho em dizer que eu não fazia parte dos poucos."

Mais uma pausa pra água.

"Lembro-me de um dia ler em algum lugar algo mais ou menos assim: 'O mundo não vai acabar, quem vai acabar somos nós, homens, se não tratarmos de cuidar do planeta'. Aquilo foi realmente verdadeiro, me deu argumento pra pelo menos analisar as coisas. Falavam-se muito em crescimento sustentável, queriam crescer sem consumir, veja só, capitalistas que não consomem? Era cada absurdo..."

Estava cansado agora, precisava respirar um pouco. Mas não desistia de continuar.

"Aquele ano, 2010, foi um ano difícil. Mas foi um ano importante, edifiquei muita coisa naquela época, naquele ano exatamente. Como pessoa, não é fácil saber se auto-avaliar, aprendi isso naquele ano, aprendi que me era extremamente saudável ter alguém com quem dividir a vida e que eu era bastante dependente disso. Foi naquele tal ano que eu conheci ela e foi lá que comecei a ser feliz de verdade, assim como ainda sou hoje, com ela."

Para e sorri, um sorriso sincero, puro, feliz.

"Mas não pense que é fácil manter-se assim, foi preciso também aprender a me doar, a me reprogramar a cada virada sutil das coisas, foi preciso ser flexível mas foi preciso também saber quem eu realmente era e o que queria para não me perder naqueles olhos e curvas e sorrisos. Relacionamentos são como boquetes alguém escreveu uma vez, ambos, homem e mulher, eu e ela, intercalam imobilidade e movimento, um em relação ao outro, um no outro, um para o outro. Eu lia algumas coisas bastante inteligentes naquela época. Tentava escrever, mas..."

Parece realmente feliz, satisfeito por assim dizer.

"Ah! Era também o centenário do Corinthians! Aaah meu Corinthians! 1º de setembro de 2010, me lembro bem, dia bonito. Orgulhoso."

Nostalgia toma conta então, os olhos fraquejam, a voz também, mas ainda tem algo à acrescentar, precisa terminar para então terminar.

"Não te digo que fui exemplo de muita coisa, nem que fui de muitas formas indispensável, mas fiz o que pude, o que meu coração me disse. E disso me orgulho ainda, mesmo depois desses incontáveis anos de vida. Se podia ter sido melhor? Absolutamente sim! Se tenho vontade hoje de voltar e ser melhor? Não, isso não. As coisas aconteceram como deviam ter acontecido, se não prejudicou ninguém, bem então não foi desperdício nenhum, sendo o melhor que podia ter sido ou não. E nunca deixei de rezar, sabia que estava no caminho certo. Foram tempos difíceis, mas foram bons tempos, tempos que gosto de lembrar."

Suspirou, encostou-se no travesseiro e fechou os olhos de vez.